segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

a máquina do tempo



The Roaring Twenties (1939), Raoul Walsh.

João Mário Grilo, "The Roaring Twenties: da retrospectiva à teoria", in  À Pala de Walsh (versão adaptada), Maio 2013:

"Walsh serve-se, aqui, do táxi como uma curiosa máquina do tempo, apoiando-se na dicotomia interior-exterior. Jean está sentada no banco de trás, recortando-se no limite da janela traseira do automóvel (através da qual vemos o exterior) e reflectindo-se, simultaneamente, no retrovisor de Eddie. O que isto quer dizer é que Eddie só pode ver Jean reflectida no isolamento emoldurado do retrovisor, olhando, portanto, para trás, enquanto ela só o vê, de costas, olhando para a frente. Esta oposição é, de resto, magistralmente exposta no plano em que o reflexo de Jean no retrovisor ocupa a metade superior do enquadramento , enquanto a metade inferior é preenchida pela cidade em movimento, olhada através do pára-brisas do carro. O plano é curto, mas inscreve na topologia da imagem o logro fatal de Eddie, assaltado por uma verdadeira miragem temporal, que não reproduz – e este pormenor é interessante e decisivo – uma qualquer subjectividade psicológica (uma visão), mas o modo realmente físico (óptico) como o personagem se inscreve no espaço e (porque é essa colagem que o filme nunca deixa de promover) se posiciona no tempo: o que vemos que Eddie vê é, portanto, exactamente, tudo aquilo que ele (não) pode (deixar de) ver.

A retórica infernal desta sequência faz com que o espectador acabe por ter um acesso privilegiado ao único dos pontos de vista que os personagens não podem ter: o do exterior da viatura, onde a toma de vistas justifica, narrativamente, o dispositivo. À excepção desta tomada de vistas – que nos diz que tudo aquilo se passa dentro de um carro em andamento -, Eddie e Jean são personagens que, de facto, experimentam a história de maneiras diferentes e opostas, lembrando muito o que Claudel dizia das viagens de comboio: o passageiro que vai sentado no sentido da marcha olha para o futuro, enquanto o que lhe está à frente é forçado a olhar para o passado. Que importa pois, que Jean diga a Eddie que está casada com Lloyd, que têm um filho de quatro anos, que Lloyd faz uma carreira brilhante de advogado, no gabinete do procurador, que o táxi se dirija para o elegante subúrbio de Forest Hill, onde o casal mora? Que importa tudo isso, qua o real se apresente em cada palavra, se Jean ali está, retrovisionada num ecrã de perdição, como a mais perfeitas das imagens do passado e a mais cristalina mise en scène das imagens passadas".

Sem comentários: