quinta-feira, 19 de novembro de 2015

cobardia

A noite já caiu. A luz que o orientará nos minutos seguintes vem do amarelo torrado dos lampiões da rua. Nunca gostei destes lampiões, pensa para si próprio, num raro momento de distracção interior. Quando visitou a terra dos pais, viu alguns lampiões semelhantes. Na altura, disseram-lhe ser do tempo colonial, mas isso agora não interessa. O último carro passou e aproveita a oportunidade para atravessar a rua. O café que lhe indicaram é este. Sim, é este, tinha estas letras e estas cores nas fotografias que viu no computador na noite passada. Ao contrário dos restantes, não chegou a tempo de poder ir ver o alvo ao vivo. Vislumbra algumas, poucas, pessoas na esplanada, mas não consegue distinguir rostos. Melhor assim. Para dentro do café, por enquanto, nada vê. Empunha a metralhadora e começa a disparar, enquanto mantém o passo firme em frente. A esplanada esvazia-se num ápice. Consegue distinguir o ruído dos seus disparos dos outros que se ouvem uns metros mais ao lado. Excelente, eles também já estão cá, pensa, agora com a coragem reforçada. Avança mais decididamente. Com a proximidade do café, sente os primeiros estilhaços no corpo. Algo fica preso na barba. Dispara durante mais quatro, cinco segundos. Agora está mesmo no passeio, em frente à montra do café. Os disparos dos outros já não se ouvem, é o sinal para recolher. Baixa a metralhadora. No interior do café, não vê ninguém. Já devem estar todos mortos. De repente, nota nesta mulher a dois metros de si, de joelhos e mãos na cabeça. Não morreu quando disparei? Porquê, porra? E porquê que não fugiu, então? Bom, disparo agora, então. Empunha novamente a arma ao mesmo tempo que a mulher gira ligeiramente a cabeça e o olha directamente. Corre no rosto dela um medo que ele próprio não se lembra de ter sentido alguma vez na vida, nem mesmo quando andou na guerra contra os infiéis. Ergue ligeiramente a cabeça e olha-a com mais atenção. Baixa a metralhadora e foge. Já vê o carro mais à frente, é uma questão de milésimos de segundo até abrir a porta e sair do local. Sou um cobarde porque não a matei como devia ter feito ou porque matei os outros todos?

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