quarta-feira, 27 de julho de 2016

Artes Entre As Letras #13 - Em defesa de "Love"

 
Quanto aos filmes eróticos ou pornográficos, sem ser um espectador apaixonado pelo género, penso que constituem uma expiação ou, pelo menos, uma dívida por saldar com os sessenta anos de mentira cinematográfica sobre as coisas do amor. Faço parte dos milhões de leitores de todo o mundo que a obra de Henry Miller não só seduziu como ajudou a viver, sofrendo eu então com a ideia de que o cinema continuava tão atrasado em relação aos livros de Henry Miller quanto à vida tal como ela é. Infelizmente, ainda não consigo citar um filme erótico que seja o equivalente de Henry Miller (os melhores, de Bergman a Bertolucci, foram filmes pessimistas) mas, afinal, essa conquista da liberdade é bastante recente para o cinema e devemos igualmente considerar que a crueza das imagens levanta problemas bem mais bicudos do que a das palavras.

François Truffaut, Os Filmes da minha vida, Orfeu Negro, 2015, p. 20.
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Há tempos, falei aqui desse "Em defesa de..." que o último filme do Gaspar Noé tinha suscitado em mim perante  o ataque generalizado de que foi vítima por grande parte (mas não toda) da crítica (e do público, já agora). O prometido é devido e, por isso, no número de Julho do Artes Entre As Letras, dedico o meu espaço a escrever - mais longamente do que o habitual - sobre Love. Como é evidente, o meu desejo não é "convencer" ninguém de nada ou mostrar o que está "certo" e "errado" sobre as leituras que se podem fazer do filme. Além de naturalmente respeitar quem desgoste ou mesmo odeie o filme, o meu desejo é, sim - o mesmo desejo, aliás, comum a todos os filmes sobre os quais escrevo -, contribuir para o debate sobre um dos filmes que mais me impressionaram nos últimos tempos.
O Artes Entre As Letras suspende as suas publicações em Agosto e volta em Setembro. Boas leituras e bons filmes.
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Em defesa de Love (2016), um filme de Gaspar Noé ★★★★
"Há tempos, referimo-nos, neste mesmo espaço, a uma tendência no seio de uma certa crítica em mal-tratar, por tudo e por nada, justa e injustamente, quase “por desporto”, dois cineastas contemporâneos, de seu nome Alejandro Iñarritu e Paolo Sorrentino (de quem, de resto, nem sequer somos especiais admiradores). A mesma tendência é possível observar, no campo do cinema dito psicadélico, sexual e “explícito”, com Nicolas Winding Refn e Gaspar Noé, autênticos “sacos de boxe” da crítica, tendo o último filme de Noé, polémico até mais não, sido objecto já de diligente tareia por parte da esmagadora parte dos nossos colegas. Como tantas vezes acontece com a crítica (cinematográfica ou não), o culto de ódios de estimação tem como efeito típico o de fazer com que o crítico, ansioso por iniciar o exercício de flagelação, se esqueça, hélas!, de olhar para o que os filmes têm lá dentro, seja por preguiça, inépcia, maldade ou, simplesmente, para seguir a tendência do momento (fazer crítica também é, sempre foi, um acto de coragem, sobretudo em tempos de unanimismos autoritários como são os nossos).
Um amigo que recentemente passou por uma experiência amorosa difícil confidenciou-nos que tinha achado Love um filme “perigoso”, no sentido em que talvez só pudesse ser devidamente apreciado (positiva ou negativamente, é irrelevante por agora) por alguém que se encontrasse emocionalmente estável. É um pensamento que indicia a carne de que se faz um filme como Love: a ilustração, autêntica e visceral, pungente e sincera, do amor como um sentimento radicalmente ambivalente, um afecto “extremista” capaz do 8 e do 80, de nos levar ao paraíso e ao inferno (por vezes em segundos…), pulsão shakespeareana de vida e morte. Aliás, olhando-o (ao amor) como essa parábola maldita e, por isso, disforme e contraditória, como não colocar a derradeira pergunta: será que o amor, de facto, existe? Ou será ele, antes de tudo, como uma personagem dizia em A Academia das Musas (o último filme de José Luís Guerín), uma “invenção literária”?
Love é a história de um casal e, como tal, necessariamente uma história de amor e de sexo, este último figurando aqui, mais do que nunca, como sexo-dependência, como o último elemento que, por vezes, segura uma relação, o aditivo que duas pessoas, por mais que racionalmente se queiram separar uma da outra, não conseguem largar. Por isso é que, contra aqueles que criticaram a reprodução alegadamente repetitiva e gratuita de cenas de sexo a partir de certa altura do filme, importa lembrar que tais cenas – isto é, o lugar e o sentido de tais cenas – são, em rigor, consequência de uma montagem inteligente e sintonizada com a “narrativa” própria das relações de amor: na verdade, essas cenas têm lugar após Murphy e Electra (Aomi Muyock, talentosa e lindíssima actriz de quem é difícil não ficar a pensar nos seus olhos para o resto da vida) terminarem pela primeira vez a sua relação e se reconciliarem, passado pouquíssimo tempo, de modo precipitado e titubeante (não é assim na vida?). Em rigor, até esse momento, as cenas de sexo alternam, de forma natural, com outras cenas, justamente porque essa é uma fase (relativamente) estável da relação; é, pois, na iminência da separação, da perda do outro, do abismo de “ficar sozinho” que o sexo-dependência vem violentamente à superfície e os cérebros não encontram outra solução senão a de ordenar aos corpos que se voltem a encontrar, senão a de fazer do prazer a única (mas artificial) salvação – e isso por mais que Murphy e Electra saibam como aquela relação não tem solução, como, no fim do dia, o estarem juntos só é pior, como a separação seria a opção mais sensata e saudável (não por acaso, o casal volta, pouco tempo depois, a separar-se definitivamente). Por outro lado, sendo o filme oferecido ao espectador de um ponto de vista declaradamente subjectivo (a narração, em off, por Murphy), a omnipresença do sexo no filme justifica-se pela sua omnipresença no pensamento do próprio Murphy: quão real é a circunstância de, quando recordamos uma pessoa que amámos no passado, nos lembrarmos também – senão sempre –, além de frases, lugares, gestos ou cheiros, do sexo com ela? E quão mais intensa não é essa memória quando se está, como Murphy, na mó de baixo, deprimido, quando se foi o rejeitado, quando se é forçado a fazer o luto de um amor perdido?
A narração desordenada, feita em off por Murphy, dos altos e baixos da relação passada com Electra (como “cenas da vida conjugal”) está perfeitamente harmonizada com a descontinuidade lógico-temporal das cenas que vão sendo mostradas (virtude do trabalho de montagem, novamente), oferecendo uma interpretação justamente subjectiva (porque é do interior da cabeça de Murphy que partimos e onde estamos durante todo o filme) dos acontecimentos, a qual corresponde ao confuso stream of consciousness do narrador (frases, imagens, gestos, lugares, tudo numa imparável torrente memorial), naquela que foi a forma achada por Noé para aproximar o mais possível o cinema da vida, no caso, a velocidade e a aleatoriedade dos pensamentos, da memória, enfim, da forma como olhamos retrospectivamente para os acontecimentos marcantes das nossas vidas. Quem não viu isto em Love, não viu nada e, seja-nos perdoada a desfaçatez, só ficou a perder.
Como Noé afirmou – e bem – publicamente, o sexo está na cabeça de muita gente durante grande do tempo, mas, ainda assim – completamos nós –, chegada a hora de o ver sem filtros no cinema, a primeira tendência é para o apupo: “pornográfico!”, “gratuito!”, “boçal!”. Manifestações que deixam latente um certo e real complexo com a visão do corpo humano como ele é e da sua dinâmica sexual. Foi assim com um incontável número de filmes na história (dispensamo-nos de fazer as citações óbvias) e, pelos vistos, ainda hoje o continua a ser. Claro que os menos (ou nada) moralistas (do público à crítica) recusarão esta ideia de si mesmos, preferindo falar do “vazio” do filme, embora esse qualificativo tenha sido utilizado precisamente como forma de enfatizar a excessiva “insuflação” do filme com o sexo (e, quanto a filmes “vazios”, o melhor da história do cinema faz-se deles: Antonioni, Kiarostami, Angelopoulos, Ozu, etc.).
Relativamente à “questão pornográfica”, apetece dizer que só quem nunca viu pornografia é que poderá dizer que Love é um exemplar do género. Em boa verdade, a pornografia, muito mais do que a opção pelo explícito, obedece a todo um código performativo e cénico da prática sexual, algo patente numa série de elementos, a começar nas posições sexuais (todas e mais algumas, sobretudo as malabaristas) e no modo de as filmar (os ângulos estereotipados), passando pelo tipo de corpos que as praticam (elas voluptuosas; eles musculados e altamente dotados) e as expressões (faciais, verbais) que os acompanham, terminando nos “feitos” alcançados (a duração temporal da relação sexual, a ausência de cansaço, as proezas de difícil execução, os supostos actos superlativamente “indecentes” praticados, etc.). Aliás, tanto é assim que cineastas feministas como Erika Lust, realizando filmes assumidamente pornográficos, têm procurado mudar as regras do jogo a partir “de dentro”, i.e., reformulando, a partir de um ponto de vista feminino e sexualmente paritário, a dialéctica do prazer e da praxis sexual interpretada pelos actores, por sua vez transmitida e, consequentemente, assimilada – “normalizada” – pelo espectador. Ora, nenhum dos elementos característicos do filme pornográfico acima referidos se consegue encontrar no filme de Noé. Aliás, não deixa de ser irónico que alguns dos detractores de Love sejam os mesmos que, perante A Vida de Adèle – onde a cena lésbica central, essa sim, tem muito de pornográfico (as posições sexuais e os ângulos de onde são filmadas, desde logo), voyeurista e “machistamente” fetichista (e não somos os únicos a dizê-lo; João Salaviza, por exemplo, afirmou o mesmo em entrevista) –, não tenham sentido nenhum “alarme” com o sexo. Onde muitos viram “pornografia” em Love, nós vemos verdade e beleza, vemos, acima de tudo, o amor e o sexo como eles são, as fantasias como elas são. Existem pénis e vaginas no filme? Seios, saliva, sémen? Penetrações? E o que é que existe, fora dos filmes e na vida dita “real”, senão isso mesmo? Quando, em Cannes, perguntaram a Noé sobre a noção de “transgressão” alegadamente subjacente ao filme, o cineasta deu a resposta correcta: “Transgressão? Qual transgressão?”. Porque, em Love, é da vida – e da vida na sua dimensão quase primitiva: amor e sexo – que estamos a falar, em primeiro e em último lugar.
Veja-se o espantoso primeiro plano do filme, um longo plano fixo de prazer mútuo entre dois amantes num quarto (quietude absolutamente impossível de encontrar num filme pornográfico), com a lindíssima música de Erik Satie (a composição para piano Gnossienne No. 1) em fundo a potenciar a dimensão fortemente pictórica (e poética) do quadro oferecido ao espectador. Dimensão pictórica, essa, transversal a todo o filme (a personagem de Electra, recorde-se, é pintora e o próprio Noé é filho de um pintor) e latente nos geométricos enquadramentos, os quais, mais do que convocadores de referências cinéfilas (Ozu, Kubrick), concorrem para a espacialidade claustrofóbica e irrespirável da relação de Murphy e Electra e, consequentemente, do filme, que, não por acaso, decorre, quase todo ele, em interiores (sobretudo a partir da primeira vez que o casal se separa). É, afinal, a mesma espacialidade “de quatro paredes”, de isolamento e reclusão do mundo, que preside a um filme como O Império dos Sentidos, por sua vez fundada nessa ideia do amor – sobretudo o amor possessivo e obsessivo, como este é – enquanto clausura física e espiritual (voluntária, claro, mas, ainda assim, uma clausura). E o que dizer do modo terno e delicado (nada “sexual” ou voraz, na verdade) como Noé filma aquele ménage à trois, momento do mais puro e inocente prazer entre três jovens a experimentar uma das fantasias sexuais mais habituais nas cabeças dos comuns mortais (é comparar com um ménage à trois num filme pornográfico e tirar as conclusões)?
Onde Noé macula o filme – e não temos reservas em dizê-lo – é, de facto, na ejaculação filmada em direcção ao espectador, que, além do tom de provocação óbvia (se bem que, aqui, até achemos alguma graça), parece ter sido o único pretexto justificativo para a utilização do 3D, na verdade perfeitamente dispensável (um chamariz de marketing, talvez), como dispensáveis são as brincadeiras egocêntricas e fetichistas do realizador com o seu próprio nome (decomposto em dois e atribuído a duas personagens). Mas isto – e um ou outro diálogo menos conseguido (o do “sentido da vida” quase a fechar o filme, por exemplo) – é pouco, muito pouco, para retirar valor e beleza a um filme que vive, todo ele, sob o signo de um sentimento que, desde tempos ancestrais, move os homens e alimenta fantasias, ilusões e mitos; que mói, mata, rejuvenesce, vivifica. Coloque-se agora a palavra “sexo” no lugar do nome desse sentimento e o efeito é o mesmo – é disso que fala Love".


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