domingo, 10 de julho de 2016

Curtas Vila do Conde #2: Vária


El Edén (2016), Andrés Ramírez Pulido


Escrevi sobre alguns dos filmes que passam hoje para o catálogo do festival, nomeadamente, nas secções Competição Internacional e Panorama Nacional. Bons filmes.

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Accidents, Blunders and Calamities
Talvez La Fontaine nunca tenha imaginado que o registo literário que ajudou a celebrizar – a fábula – se pudesse “virar” contra os humanos, circunstância algo irónica quando estes ratinhos não deixam de possuir características antropomórficas, logo, humanas. E não será também por acaso que sejam os ratinhos os escolhidos para “personagens principais”, não fossem eles os animais historicamente mais utilizados pelos homens como cobaias em experiências científicas. Nesta animação visualmente irrepreensível, os homens são os “piores amigos” dos animais, razão pela qual o pai, na bedtime story que conta aos seus filhotes, os classifica como “the most dangerous of all”, de forma a desincentivá-los a sair da toca. Mas como viver no medo e na ignorância – a toca como a “caverna” platónica – não é solução para nada, o humor negro de James Cunningham, que aqui se inspira na obra ilustrada de Edward Gorey, acaba por veicular, na melhor tradição da fábula, a lição de moral essencial que fecha o filme. 

Retrospective
Podemos falar sobre a nossa vida a partir de determinados objectos? Artista visual multi-facetada (cinema, vídeo, fotografia), Salla Tykkä – cuja obra tem sido frequentemente exibida no Curtas, tendo mesmo sido uma das autoras In Focus em 2009 – ensaia, como o título indica, a retrospectiva de uma mulher tendo como referente cronológico o material fotográfico que esta foi adquirindo, pela sua voz se ouvindo a descrição das características, funcionalidades e outras particularidades e sendo nas dúvidas que tem sobre determinados aspectos que reside uma das dimensões mais interessantes do filme, a do esquecimento e da fragilidade da memória (“foi mesmo assim?”). O registo não é biográfico no sentido convencional do termo, pelo que a narração em off diz mais sobre o material do que sobre a vida pessoal da mulher, se bem que os objectos que estimamos possam, por vezes, revelar muito sobre nós. E depois, claro, há a imagem, não apenas a da mulher a manejar o equipamento mas, sobretudo, aquela que é filmada em diferentes momentos e locais (Patagónia e Terra do Fogo), quase sempre em registo paisagístico, a espaços poético, e cuja acumulação vai, bem assim, construindo toda uma outra paisagem, “memorial” (e neste sentido sim, biográfica), tal e qual as imagens mais ou menos nítidas (o problema da fidelidade da memória, novamente) que conservamos dos locais por que passámos na vida. 

Cabeça de Asno
O último filme de Pedro Bastos – presente na Competição Nacional de 2013 com “Ao Lobo da Madragoa” – tacteia, através do método “socrático”, a origem, o fundamento, enfim, a ontologia da imagem mediante um processo interrogativo no qual as questões colocadas em off, mais do que buscarem respostas ou soluções (ou não as buscando de todo), se consubstanciam em plataformas de compreensão possíveis que, em qualquer caso, sempre levam a novas interrogações e especulações, espécie de work in progress constante e infinito, em espiral, até à origem das origens. Nessa demanda em ritmo diarístico, são utilizados suportes diversos (com especial destaque para a utilização “plástica” da película) e sugeridos outros (o expressionismo pictórico latente na de-formação da casa abandonada), assim se trilhando um percurso poético que, partindo da memória da infância (qual a primeiríssima imagem de que temos recordação?), se dirige “para trás” (e não “para a frente”) em direcção ao ventre materno, não sem o seu quê de escatológico. Destaque, ainda, para o excelente tratamento de som, absolutamente fulcral (desde logo, por exemplo, na captação do “riscar” das paredes), a par da evocação mais literal em off (o bolor, a humidade, o mofo), para a construção do ambiente profundamente sensorial de todo o filme. 

El Edén
Se os únicos sentidos que, objectivamente, o cinema partilha com o espectador sobre a realidade filmada são a visão e a audição, o filme de Pulido – presente na secção Generation da Berlinale deste ano –, na sua extrema sensorialidade (e sensualidade), vai um passo além, fazendo-nos aceder aos cheiros (das flores, árvores) e sabores (dos frutos) deste “paraíso perdido” (éden, justamente), outrora um hotel, visitado por dois miúdos pobres sem nada para fazer numa tarde de um calor tropical (e é como se também o sentíssemos, ao calor e à humidade, na pele). É neste espaço abandonado e dominado pela natureza, selvagem como os dois miúdos de tronco nu que o tacteiam, que se escondem – e nascem… – vários segredos, do delicioso sabor dos frutos até outros mais sombrios (e há aqui ressonâncias bíblicas, claro, pois aos frutos segue-se um acontecimento marcante). Realismo, sim, mas sempre com qualquer coisa de místico, mágico (não será descabido convocar aqui a tradição do “realismo mágico”, fortemente enraizado na América Latina e cujo maior representante, Gabriel García Márquez, é compatriota do realizador), de que o título do filme é só um indício revelador. A esse Éden/Paraíso da descoberta da natureza, do silêncio, da paz, enfim, da vida, contrapõe-se o “Inferno” da violência e da morte (o simbólico escorpião), e é na sugestão de como ambos estão tão perto um do outro que Pulido, filmando os actores quase sempre em plano aproximado ou em grande plano, deixa uma fortíssima impressão. 

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